Não é novidade que a devoção a São Jorge seja compartilhada entre cristianismo, umbanda e candomblé. Mas poucos sabem que o islamismo também celebra o dia do Santo Guerreiro. Muçulmanos associam a figura de São Jorge a Al-Khidr, mencionado no Corão como um amigo de Moisés. Essa e outras curiosidades ganham vida no recém-lançado livro “Guerreiro”, do fotógrafo Cesar Fraga, de 45 anos, que registrou a paixão pelo santo mundo afora.
À primeira vista, a relação do islã com o santo pode parecer improvável, já que São Jorge teria nascido no ano 275, quase dois milênios depois de Moisés, que teria vivido 1.500 anos antes de Cristo. Mas o historiador Luiz Antonio Simas, que assina os textos do fotolivro, dá uma pista para o surgimento dessa associação.
Segundo o Corão, enquanto os filhos de Israel vagaram pelo deserto em busca da terra prometida, Moisés conviveu com Al-Khidr. Há quem diga que Al-Khidr foi um profeta. Outros o veem como um servo de Alá. Alguns, porém, apontam que Khidr seria Kothar wa Khasis, personagem mitológico capaz de matar dragões. Viria daí a associação de Khidr a São Jorge, o caçador de dragões na mitologia cristã.
Entre o mito e a história
A vida de São Jorge é bordada pelos cruzamentos entre o mito e a história. Há duas versões sobre a trajetória do santo, e o relato mais antigo sobre a sua existência é o fragmento de um texto grego do século 5. Mas milhares de fiéis peregrinam todos os anos à cidade de Lod, em Israel, onde fica a Igreja Ortodoxa de São Jorge, que abriga o túmulo (foto) onde estariam guardados os restos mortais do Guerreiro. Outra curiosidade sobre o culto na região se refere ao Mosteiro Ortodoxo Grego de São Jorge, na Judéia. O santo que nomeia o mosteiro não é Jorge da Capadócia, e sim Jorge de Coziba, nascido no Chipre. Mas o culto ao Guerreiro é tão forte, que muitos
vão até lá achando que se trata do famoso.
O mártir virou guerreiro
São Jorge é popularmente conhecido como o Santo Guerreiro. Mas nem sempre foi assim. De origem oriental, ele era considerado pelos cristãos ortodoxos (foto) um santo protetor e seu culto se devia especialmente por ser um grande mártir. A popularidade de São Jorge cresceu a partir do século 11, quando o Império Bizantino se envolveu em conflitos militares, sobretudo contra muçulmanos, e passou a ser governado por uma aristocracia de formação militar. Aos poucos, São Jorge perdeu as características que o ligavam ao martírio e passou a ser retratado prioritariamente como um militar, de espada em punho e escudo de defesa, combatendo o dragão. "Quando os cruzados voltaram do Oriente Médio, passaram a atribuir suas vitórias a São Jorge, que no Ocidente, passou a ser conhecido como o Santo Guerreiro”, diz Fraga.
Igreja virou estábulo
Quem for visitar o local onde São Jorge teria nascido pode ficar decepcionado. A Igreja de Güzelöz (foto), vilarejo da Capadócia apontado como berço do Guerreiro, foi transformada em um estábulo. Não foi a única. A maioria das igrejas cristãs foram abandonadas com o declínio da religião no país. Hoje, os cristãos não chegam a 1% da população turca, e se dividem entre cristãos armênios, siríacos, ortodoxos gregos e adeptos de cultos latinos, como os católicos romanos. Só nos últimos anos, com a crescente presença de turistas devotos de São Jorge, o governo turco começou a se preocupar com a conservação das igrejas. "Foi desolador ver a degradação do patrimônio histórico cristão na Turquia. Mesmo com toda a recente tentativa de preservação, é impossível resgatar a riqueza dos afrescos", diz Cesar Fraga.
Jorge, Ogum e oxóssi
Ogum é um orixá dos mais populares no Brasil. Na condição de guerreiro, Ogum foi associado a São Jorge por aqui. “Foi no estado do Rio que surgiu a Umbanda, religião que resulta do amálgama entre calundus, pajelanças, catimbós, encantarias, cabocladas, culto aos orixás iorubanos, arrebatamentos do cristianismo popular, espiritismo kardecista e afins. Nos ritos do Candomblé, Ogum é um orixá ao qual são oferecidos bodes, galos e inhames carás temperados no azeite de dendê (foto). Na Bahia, São Jorge não é aproximado a Ogum, e sim a Oxóssi, orixá da caça e da fartura”, escreve Luiz Antônio Simas, que faz uma ressalva: “Muitos candomblés vêm adotando posturas contrárias ao sincretismo com os santos católicos, em um processo chamado por alguns de reafricanização do culto”.
Das ruas para a avenida
A foto acima pode parecer ter sido feita durante a encenação da Paixão de Cristo. Na verdade, trata-se de um Auto de São Jorge, montado no Rio. As procissões e feijoadas em honra ao Santo Guerreiro são tão tradicionais na cidade que a devoção ganhou a Sapucaí. Depois de ter proibido o desfile do Cristo Mendigo, idealizado pela Beija-Flor, em 1989, a Arquidiocese autorizou a Estácio de Sá a fazer um desfile sobre São Jorge, em 2016. As condições eram: não depreciar o santo e não fazer menção ao sincretismo religioso. Mas a escola, discretamente, fez referências. O refrão do samba falava de seu manto carregado de axé, palavra de iorubá que significa energia. Outro trecho citava a feijoada, comida votiva de Ogum. Uma alegoria da escola trazia referências às yabassês, mulheres iniciadas no candomblé que preparam os alimentos das divindades.
Extra
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